Saturday, January 31, 2009

A derrota ideológica do neoliberalismo - Immanuel Wallerstein

Immanuel Wallerstein trabalha com a hipótese de um retorno do ciclo secular, e mesmo multissecular, colocando para os próximos 30 ou 40 anos a questão histórica sobre a superação do capitalismo e criando assim uma nova perspectiva para o altermundialismo.

O ideograma chinês que representa a palavra “crise”, muito antigo e venerável, associa dois signos, contraditórios como é de esperar de toda boa dialéctica: o dos perigos e o das oportunidades.
O primeiro perigo se relaciona à pobreza e permite entrever profundas contradições por vir. A saída da crise consiste em fazer com que os pobres e, sobretudo, os discriminados e os neocolonizados paguem por ela. Trata-se também de espremer as camadas intermediárias. E, caso isso não funcione, fazer com que certas classes ricas também paguem a conta.
Para que tais políticas sejam “aceites”, será preciso muita repressão, muita criminalização dos movimentos sociais, punição da solidariedade, propagação da ideologia da segurança, instrumentalização do terrorismo, que explora o medo para espalhar mecanismos de segurança e de disciplina, muita agitação racista, islamofóbica e nacionalista, muita criação de bodes expiatórios e exploração de migrantes.
Para além dos perigos, quatro oportunidades foram abertas pela crise. Já é possível falar em nova regulação pública, redistribuição de riquezas, menor desequilíbrio entre Norte e Sul e reinvenção da democracia
Essa evolução fará com que certas regiões rumem para regimes autoritários e repressivos, e mesmo para fascismos e populismos de contornos fascistas. Os riscos de guerra são também uma saída clássica para as grandes crises. Não esqueçamos que o mundo já está em guerra e que cerca de 1 bilhão de pessoas vivem em regiões em guerra. Os conflitos são permanentes e a desestabilização é sistemática.
As formas de guerra mudaram com a militarização das sociedades, o apartheid global, a guerra dos fortes contra os fracos, a banalização da tortura.
Pode-se lutar contra esses perigos pela resistência, pelas alianças e pelas coligações em favor das liberdades, da democracia e da paz.
Para além dos perigos, que são mais conhecidos, quatro oportunidades foram abertas pela crise.
1. A derrota ideológica do neoliberalismo favorece a ascensão em termos de força das políticas de regulação pública.
2. A redistribuição das riquezas traz novamente a possibilidade de retorno ao mercado interno, à estabilidade de salários e à garantia das rendas e da protecção social, a uma nova ampliação dos serviços públicos.
3. O reequilíbrio entre norte e sul abre uma nova fase da descolonização e uma nova geopolítica do mundo. E é acompanhado por uma nova urbanização e por ondas migratórias que são as novas formas de povoamento do planeta.
4. A crise do modelo político de representação torna incontornável a ampliação da democracia social e o reforço da democracia representativa pela democracia participativa.
Entre 30 e 50 países emergentes – dos quais os três mais dinâmicos são Brasil, Índia e China – trazem a potencialidade de defender em conjunto seus pontos de vista e interesses. Não se trata de um mundo multipolar, mas da possibilidade de um novo sistema geopolítico internacional. As consequências poderiam ser consideráveis, notadamente para os termos de troca internacional e para as características das migrações.
Existem duas condições para essa evolução, que não se realizará sem algumas confusões. A primeira é que os países emergentes sejam capazes de mudar seu modelo de crescimento privilegiando o mercado interno e o consumo das camadas populares e classes médias, em detrimento das exportações. Essa desconexão é possível. A segunda é que os países emergentes construam alianças com os países do sul.
A primeira fase da descolonização fracassou, em grande parte, quando os países produtores de petróleo, após o choque de 1977, permitiram a divisão entre os países do sul. Essa condição permitiu ao G7, apoiado pelo FMI e pelo Banco Mundial, impor os ajustes estruturais.
Uma experiência neokeynesiana poderia se traduzir em reabilitação dos sistemas de protecção social e estabilidade salarial. Os pisos salariais, progressivamente elevados, seriam motor do crescimento. Mas há duas condições para tanto
A redistribuição de riquezas, necessária em razão da lógica do neoliberalismo e de seus excessos, abre espaço para uma tentação neokeynesiana. Ela consolida a tendência a reabilitar o mercado interno em escala nacional e estimula a integração regional.
Essa tentação neokeynesiana poderia se traduzir em uma reabilitação dos sistemas de protecção social e de uma estabilidade salarial. Os pisos salariais e sua progressão reencontrariam seu papel como motor do crescimento, no lugar do superendividamento que a crise dos subprimes revelou. O acesso universal a direitos, do qual os Objectivos de Desenvolvimento para o Milénio são um pálido sucedâneo, conquistaria de novo sua importância na agenda mundial. Existem duas condições para que se realize essa hipótese (que não deve ser confundida com a ideia de um simples retorno ao modelo keynesiano de antes do neoliberalismo).
A primeira é a necessidade de dar uma resposta aos limites ecológicos que tornam perigoso um prolongamento do produtivismo. A contradição entre o ecológico e o social tornou-se determinante, e sua superação é primordial. A segunda é a necessidade de uma regulação aberta em escala mundial, em comparação com a regulação nacional preconizada pelo sistema de Bretton Woods dos anos 1960.
O maior poder da regulação pública completará a derrota ideológica do neoliberalismo. O neoliberalismo permanece predominante, mas a ideologia neoliberal sofreu uma derrota lancinante, cuja recuperação será difícil. As nacionalizações ditas temporárias, até que se saia da crise, dificilmente poderão ser revertidas.
Os fundos soberanos já tinham aberto a via das intervenções inesperadas dos Estados em escala global. A análise e o questionamento das privatizações, até então pedidas sem qualquer sucesso, reservarão certamente algumas surpresas. A nova racionalidade dificilmente poderá continuar a submeter completamente a regulação aos mercados e a confundir o privado com os capitais e seus mercados.
Se o capitalismo não é eterno, a questão de sua superação pode ser actualizada. E poderíamos começar desde já a reivindicar e a construir um outro mundo possível
O retorno da regulação pública poderia tomar outro aspecto, distinto da estatização clássica, e combinar socialização e controle democrático. As diferentes formas de propriedade social e colectiva poderiam encontrar uma nova legitimidade. As nacionalizações poderiam adaptar-se à construção de novos blocos e comunidades regionais. A renovação dos modelos de poder e de representação deveria estar no centro das recomposições económicas e sociais. É provável que a reconstrução do elo social encontre novas alternativas às formas jurídicas da democracia imposta de cima para baixo.
A democracia continuaria como uma referência, mas as determinantes poderiam mudar. Os sistemas institucionais e eleitorais dificilmente poderiam ser considerados como independentes das situações sociais.
As reivindicações poderiam dar maior relevo às liberdades individuais e colectivas e às respectivas garantias. O acesso aos direitos individuais e colectivos para todos poderia fundar uma democracia social sem a qual a democracia política perderia muito de seus atractivos.
As formas de articulação entre a democracia participativa e a democracia representativa, e sua ligação primordial com a democracia social, poderiam progredir e se diversificar.
Outros desdobramentos, já iniciados, deverão ganhar mais importância. As colectividades locais expandirão seu papel como poderes e instituições locais.
A aliança estratégica entre as colectividades locais e os movimentos associativos estará na base dos territórios e do reconhecimento da cidadania a migrantes.
Evidenciando o potencial trazido pelas resistências e pelas práticas actuais, o altermundialismo oferece uma perspectiva à saída da crise actual em seus diferentes aspectos.
Ele permite fundar, contra os conservadorismos autoritários e repressivos, coligações pelas liberdades e pela democracia. Dá condições para o combate da possível aliança entre neoliberais e neokeynesianos, ao provocar as resistências e as reivindicações pela modernização social. Permite pressionar o neokeynesianismo até seus limites. E permite o esboço das alternativas que caracterizarão um outro mundo possível.
Mas é preciso ir além. Afinal, se o capitalismo não é eterno, a questão de sua superação pode ser actualizada. E poderíamos começar desde já a reivindicar e a construir um outro mundo possível.